Há três anos, alguns blogs e postagens fizeram propaganda sobre o lançamento do selo comemorativo do centenário das Assembleias de Deus no Brasil. O selo possui a logomarca oficial do centenário, porém em forma de um quebra-cabeça, querendo assim demonstrar o grande mosaico que é a denominação, composta de vários ministérios e convenções. No selo aparecem ainda quatro mãos que ajudam a montar o quebra-cabeça, o qual significa a unidade dos diversos segmentos da denominação em torno do centenário.
A iniciativa é louvável, e o selo é realmente um símbolo da realidade de uma denominação que a cada dia que passa mais se fragmenta em ministérios e convenções concorrentes entre si, tendo à única coisa em comum o nome: Assembleia de Deus.
Mas, não é só o selo comemorativo que simboliza a tentativa de unir facções assembleianas em torno de tão aguardada data. Já há algum tempo, a história da denominação tem sido um instrumento para de alguma forma, unir as igrejas em torno de objetivos comuns. Chamo à atenção para o “mito fundador”que se evidencia na história assembleiana. Estes atendem pelo nome de pioneiros ou missionários suecos, ou mais especificamente Daniel Berg e Gunnar Vingren.
Quando se fala de mito, logo nos vem em mente a ideia de uma narrativa imaginária e fantástica de um acontecimento, ou seja, uma história fictícia. O chamado “mito fundador” (ou mito fundante por outros autores) é um conceito usado pela escritora Marilena Chauí não no sentido que se habitualmente se conhece e usa, mas no sentido antropológico “no qual essa narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade”.
Segundo a autora o “mito fundador” impõe um “vínculo interno com o passado de origem, isto é, com um passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente presente...”. (CHAUI 2000 p.9)
Alguns exemplos do mito fundador em nossa sociedade são: Descobrimento do Brasil, os Bandeirantes, Proclamação da República, entre outros. Esses acontecimentos são fatos históricos reais, porém são utilizados de forma grandiosa e mítica para legitimar a nossa cultura ocidental e europeia, justificar o genocídio dos indígenas, e principalmente entre outras coisas, assegurar o status quo de um determinado grupo no poder.
Assim, a cada ano que se passa, o mito sueco mais se faz presente no contexto assembleiano. Seja para legitimar lideranças, doutrinas e costumes, ou para conclamar a união de todos os ministérios, pois afinal de contas todos os assembleianos têm nos suecos sua origem espiritual comum. Basta verificar como a imagem dos pioneiros escandinavos é usada nos históricos das igrejas e convenções.
O que essa supervalorização dos missionários suecos esconde na verdade, são as contradições e os muitos embates que houve entre eles e os pastores brasileiros durante os primeiros anos, e o período de formação das Assembleias de Deus no Brasil.
Lewis Petrus |
No livro História da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil é relatado um intenso debate ocorrido em 1947 entre as lideranças sobre a “superioridade dos missionários”. Nessa convenção ficaram evidentes as tensões entre os pastores nacionais e os suecos, pois as questões debatidas foram justamente sobre a liderança e pastorado dos escandinavos nas igrejas brasileiras. O desconforto e ressentimentos são visíveis em cada colocação de ambos os lados.
Em toda a sua história, fica também evidente que a formação de ministérios e convenções da Assembleia de Deus, teve origem no nacionalismo de certos líderes, que procuravam distinguir suas igrejas das dos suecos por serem elas conduzidas por pastores nacionais. Paulo Macalão e Ministério de Madureira é o caso mais conhecido.
Porém, a evidência histórica que desmonta a excessiva valorização do mito sueco no meio assembleiano é o caso de Gunnar Vingren. Como bem observou em entrevista o sociólogo Gedeon Alencar, Vingren hoje é laureado como herói, mas foi voto vencido em todos os seus projetos (principalmente na questão do ministério feminino na igreja).
É realmente uma ironia da história que hoje os suecos sejam aclamados, celebrados e relembrados para se manter a união dos ministérios (como disse Chauí sobre o mito fundador: é o passado que não cessa, é o vínculo), mas anteriormente eles foram a causa do início da fragmentação denominacional.
É lógico que a formação dos primeiros líderes se deve a esses homens. Até hoje a denominação carrega suas marcas. Porém na proximidade do centenário, com sua evidente e escandalosa fragmentação, a liderança procura de alguma forma “resgatar” símbolos, ícones e heróis para que - ainda que precariamente - manter uma unidade e legitimar sua liderança, a qual vive em processo de antropofagia.
Somente uma breve e irônica observação: se fosse escolher um símbolo, escolheria a Torre de Babel para representar as Assembleias de Deus no Brasil.
Fonte:
CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000.
DANIEL, Silas. História da Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.
FRESTON, Paul. Breve História do Pentecostalismo. In: ____. Nem anjos nem demônios; interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994.